Nossa cultura sempre posta em canto pelos encantos de outras. Mas, com o canto da sereia, ela começa a soar de uma outra maneira. Série de textos sobre música e mitologia grega
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4. Em canto
O homem se atira ao mar e assim começam suas aventuras: monstros, tempestades, batalhas e o ardiloso canto das sereias. De voz maravilhosa, que afoga quem a ouve em profundas águas, as sereias seduzem os ouvidos dos marinheiros de primeira viagem. A estória, já a conhecemos; ela inunda nossa imaginação e não é de hoje, e vem pro hoje.
Ulisses, depois de terminada a guerra de Troia, nos canta a Odisseia de Homero, levou anos velejando para voltar à Ítaca, sua casa, porque, no regresso, encontrou muitas dificuldades pelo Mar Mediterrâneo; entre elas, o canto das sirenas, sereias. O herói, com sua astúcia, conseguiu sobreviver a elas, ordenou aos seus homens que colocassem cera e mel em seus ouvidos e que o acorrentassem ao mastro do barco muito bem – pois ele mesmo gostaria de ouvi-las. Ulisses, então, revela: seduzem pela promessa de sabedoria. Porém, se cede a promessa, entrega-se a sua própria danação, afogando-se.
Há outra estória conhecida de promessa de sabedoria que leva à perdição. A sereia seduz pelos ouvidos; a serpente, pela boca. Ulisses domou os sentidos, mas Eva saboreou a maçã proibida, instaurando o pecado original da humanidade. Germain escreveu: “para o homem primitivo, grego ou semita, o desejo de saber – de ser como os deuses, era o desejo fatal”.
Irmana-se a essa mitologia um dos mitos brasileiros mais antigos: Mãe d’água, ou Iara. Como descreve Câmara Cascudo em seu dicionário do folclore brasileiro: “Ainda em 1819, Martius escrevia que a Mãe d’Água, paranamaia, mãe do rio, era serpente esverdeada ou parda.” Justapõe-se as imagens da sereia cantante e da serpente nesse ser que mora no fundo do Rio Amazonas. Brasileira.
O homem primitivo do Brasil, do folclore, no entanto, sentiu o gosto de carne humana. Antropofagia pagã. Oswald de Andrade escreveu o “manifesto antropófago” inspirado no ritual em 1928. A obra propõe a devoração metafórica da cultura do outro, digerindo-a, subvertendo-a para conceber uma renovação cultural brasileira. Esse outro é o europeu e o primitivo americano também. Um grande marco do movimento é o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral.
Assim, trazendo essa fome para a música, foram surgindo novas canções na deglutição da sereia antropófaga, novas promessas. Coube ao cancionista moderno o título de neo-sereia; é o nosso novo encantador. Pois, se a sereia grega seduzia pelo saber antigo, a nossa seduz pela expectativa de um saber novo, pela nova configuração cultural com um sabor renovado. Atrai os marinheiros, já não mais ingênuos, para habitar o mar consigo e, então, devora-os – metaforicamente, extraindo deles uma nova canção de saber subvertido, que até ela desconhecia antes de sentir o sabor da carne brasileira.
Ouça nossas sereias [clique nos botões a seguir]:
Referências Bibliográficas:
MENESES, Adelia Bezerra de. Sereias: sedução e saber. Rev. Inst. Estud. Bras. 2020, n.75. pp.71-93
Série Orpheu: 4. Em canto – Gabriel Delvage
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